29 janeiro 2008

O NARRADOR — DE CALVINO E BENJAMIN

Sônia Mariza da Silva Dotto

Italo Calvino [1] enxerga o mundo como um sistema de sistemas, em que cada sistema particular condiciona os demais e é condicionado por eles. Seu pensamento coincide com o do romancista, também italiano, Carlo Emilio Gadda que, durante sua vida, “buscou representar o mundo como um rolo, uma embrulhada, um aranzel, sem jamais atenuar-lhe a complexidade inextrincável — ou, melhor dizendo, a presença simultânea dos elementos mais heterogêneos que concorrem para a determinação de cada evento” (CALVINO, 1990, p. 121).

Calvino pensa o romance contemporâneo como enciclopédia, método de conhecimento e, principalmente, rede de conexões entre fatos, pessoas e coisas do mundo. Um jogo entre a meticulosa concepção da obra e os lances do acaso, exatidão e deformação do texto, como realiza Gadda, cujos elos infinitos entre as coisas exigiriam precisas denominações, descrições e localizações espacio-temporais. Isso se daria por meio duma consciente utilização das possibilidades do verbo, dos arranjos e combinações de sentido, das escolhas e contenções das letras e palavras carregadas de significação — paixão filosófica inspirada em Leibniz e Spinoza — que também atingiu o escritor argentino Jorge Luis Borges.

Daí ser a multiplicidade uma das propostas de Calvino para este milênio,[2] amparada no desafio da escrita, que multiplica o tempo dentro da obra, onde circulam milhares de informações simultaneamente. Essa é uma marca do atual gênero romanesco, a expressar visões pluralísticas e multifacetadas do mundo. Os múltiplos aspectos das narrativas proliferam nas diversas visões de um mesmo fato, nos variados discursos dentro de um mesmo livro, na consciência acerca das diferenças.

Entre os romancistas enciclopédicos, o escritor nascido em Santiago de Cuba menciona Flaubert, justamente por sua curiosidade infinita pelo saber humano acumulado. Diferentemente dos exemplares da literatura medieval — como a Divina comédia de Dante Alighieri — que tentavam integrar o saber humano numa ordem e numa forma de densidade estável, a narrativa ficcional da contemporaneidade nasce

da confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras de pensar, estilos de expressão. Mesmo que o projeto geral tenha sido minuciosamente estudado, o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmonioso, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial (CALVINO, 1990, p. 131).


Calvino distingue entre um escritor-engenheiro que se implica nas inter-relações construídas por ele próprio (Gadda) de um outro, que transmite a impressão de compreender a totalidade da rede, sem nela se envolver (Robert Musil). Quase ao final das Seis propostas para o próximo milênio, o ensaísta considera especialmente Paul Valéry, devido a suas perfeitas combinações de poesia, ciência e filosofia. O ideal estético do poeta e crítico francês — exatidão imaginativa e lingüística — seria alcançado pelas obras de Borges, “que correspondem à rigorosa geometria do cristal e à abstração de um raciocínio dedutivo [...] cada texto seu texto contém um modelo do universo ou de um atributo do universo, o infinito, o inumerável, o tempo, eterno ou compreendido simultaneamente ou cíclico” (CALVINO, 1990, p. 133).

Pelo nível de abrangência e profundidade, podemos estabelecer uma relação teórica com o rigor narrativo de Fiodor Dostoiévski, cuja obra foi aplaudida por Mikhail Bakhtin, em estudo consagrado na história da crítica literária.[3] Outro escritor russo— Nikolai Leskov (1831-1895)[4] — tem certa afinidade com Dostoiévski, como sua orientação religiosa. Ele produziu uma série de contos sobre as seitas rurais, cujo personagem central é o homem justo, em geral, simples e ativo, “que se transforma em santo com a maior naturalidade. A exaltação mística é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questões de piedade preferia uma atitude solidamente natural. Seu ideal é o homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele” (BENJAMIN, 1994, p. 200).

Poucos narradores tiveram uma afinidade tão profunda com as crônicas, os contos de fadas e as lendas, quer dizer, com as narrativas populares, como Leskov. Suas obras transmitem as histórias vindas da experiência. Por intermédio desse romancista, Benjamin exemplifica o papel do narrador, como alguém que sabe dar conselhos, e não informações, as quais sempre vêm ligadas à idéia de algo novo a ser contado, mas que elimina a narrativa e seus encantos.

A tipologia de Benjamin quanto aos narradores repousa na idéia de que o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele seria algo de distante, substituído pela instância narrativa do romance, o qual não se mostra significativo por descrever pedagogicamente “um destino alheio, mas porque esse destino alheio, graças à chama que o consome, pode dar-nos o que não podemos encontrar em nosso próprio destino. O que seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro” (BENJAMIN, 1994, p. 214).

Embora reunidos na mesma Escola de Frankfurt, também conhecida por Teoria Crítica, Benjamin várias vezes diverge de Theodor Adorno.[5] Um das possíveis divergências pode ser exemplifica pela seguinte citação: “Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produção do engodo” (ADORNO, 2003, p. 57).

Conforme o texto de Adorno, a pretensão de quem narra o romance liga-se a um mundo essencialmente implicado ao processo moderno de individualização, transformando as qualidades humanas em alienações universais. Para Benjamin, os grandes narradores parecem fundar um espaço interior, configurado na experiência coletiva, e que lhes pouparia o passo em falso no mundo estranho. Assim, o ato de narrar, no sentido que lhe empresta Leskov, seria uma forma de artesanato, a destacar os valores autênticos da vida no campo, no mar e na pequena cidade.

A relação artesanal representa-se nas personagens bondosas ou malandras, em realidades concretas, porém, sob auréolas do mito e do mítico. Segundo Benjamin, contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo; ela não se conserva, do mesmo modo que as histórias, quando se perde a experiência. A narrativa estaria em vias de extinção porque ninguém mais tece ou fia ouvindo casos, lendas, narrações de acontecimentos vividos. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.

Parodiando Benjamin, descrever Leskov, Dostoiévski, Borges, Valéry, Musil, Gadda e Flaubert como narradores não significa trazê-los para mais perto de nossa realidade, mas aumentar a distância que nos separa deles. Seus traços narrativos, grandes e simples, aparecem num apropriado distanciamento dos choques da modernidade. Essas características fazem-se presentes tanto em Calvino, Benjamin e Bakhtin quanto em suas traduções, leituras, discussões e releituras — processadas no Brasil contemporâneo — por críticos literários, historiadores ou teóricos da literatura e leitores-empíricos, à maneira do que acontece com “Poe, como em Stevenson. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo” (BENJAMIN, 1994, p. 221).

[1] Cf. CALVINO, Italo. “Multiplicidade”. In: CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. 3. ed. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 115-138.


[2] “‘Leveza’, ‘Rapidez’, ‘Exatidão’, ‘Visibilidade’ e ‘Multiplicidade’ são cinco conferências que Calvino havia preparado para a Universidade de Harvard e que, devido à morte súbita do autor, nunca foram proferidas. São também cinco das qualidades da escritura (uma sexta, a Consistência, seria o tema da última conferência, jamais escrita) que Calvino teria desejado transmitir à humanidade do milênio que estava por vir.” EDITORES. Paratexto não titulado. In: CALVINO, 1990, primeira aba.


[3] Cf. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 3. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.


[4] As informações sobre Leskov são retiradas de: BENJAMIN, Walter. “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.


[5] ADORNO, Theodor. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. p. 55-63.